Quando o assunto é a escravidão no Brasil, é natural (e assim deve ser!) sentirmos uma repulsa e nojo ao lembrarmos desta instituição nefasta que prevaleceu no país por vários séculos. Todavia, é necessário acrescentar que a escravidão durante boa parte da história do Brasil e de outros países era uma instituição defendida e estimulada com a maior normalidade possível. Portanto, devemos nos resguardar para não cometermos erros anacrônicos. O anacronismo consiste essencialmente em utilizar os conceitos e ideias de uma época para analisarmos os fatos de outros tempos.
Quando pensamos nos heróis das campanhas da abolição em Campos, é inevitável não lembrar de um dos gigantes desta terra, o Tigre da Abolição, o ilustre José do Patrocínio. Mas hoje, trago à luz do tema a história de Luís Carlos de Lacerda, mais conhecido como Carlos de Lacerda.
Campos dos Goytacazes, na década de 80 do século XIX, se transformou em um importante reduto de abolicionistas. Este fato rendeu até um apelido para a cidade, que passou a ser conhecida como “o quartel-general da abolição”. Segundo o historiador Hervé Salgado em sua obra “Campos na taba dos Goytacazes”, a cidade tinha uma das maiores populações escravas do Brasil, havendo em Campos, segundo o censo de 1880, cerca de 99 mil habitantes, havendo dentro deste número uma população de 35 mil escravos.
A cidade era mundialmente conhecida pelas suas grandes usinas e engenhos de açúcar, que obviamente contavam com uma grande quantidade de cativos para tocarem os trabalhos nestas usinas. Desta forma, é evidente a existência de uma elite de fazendeiros e empresários, que defenderiam com unhas e dentes a escravidão. Em contrapartida, a partir dos primeiros anos de 1880, os campistas abolicionistas (grande parte formada por profissionais liberais) começaram a se movimentar para combater a escravidão no município, entre eles o referido Carlos de Lacerda.
Luís Carlos de Lacerda nasceu em Campos, em 1853, membro de uma família de notáveis. Era filho do médico João Batista de Lacerda e teve como irmãos os médicos João Batista de Lacerda e Álvaro de Lacerda, o advogado Cândido de Lacerda e o jornalista Antônio de Lacerda. Dos cinco irmãos, o único que não prestou serviços à causa abolicionista foi João Batista, que desde cedo se dedicou ao estudo de física, química, botânica e biologia, tendo sido diretor do Museu Nacional.
Carlos de Lacerda foi agraciado pelo Imperador D. Pedro II com a Ordem da Rosa na década de 70 do século XIX após prestar serviços na segurança policial da província do Rio de Janeiro.
Para a surpresa de muitos, Carlos de Lacerda não entrou na militância da causa abolicionista de primeira, em 1881 ele recusaria o convite para participar da “Sociedade Campista Emancipadora” e através das colunas do jornal Monitor Campista afirmava que “deixava de aceitar porque tratar-se da extinção momentânea do elemento servil é amesquinhar-se a ideia e ridicularizar-se a liberdade a quem não sabe compreendê-la nem defini-la” (Monitor Campista, 29 de junho de 1881).
Mas, dentre os anos de 1881 e 1884, este notável campista mudou radicalmente de opinião, passando a ser conhecido como um dos mais exaltados e ativos abolicionistas de Campos. Este seu posicionamento atraiu os olhares dos fazendeiros escravocratas do município, e desta maneira, Carlos de Lacerda passou a ter que lidar com insultos, perseguições e ameaças de morte provenientes de homens poderosos.
A militância de Carlos de Lacerda se diferenciava de outros abolicionistas da cidade, Carlos de Lacerda além de promover arrecadações públicas para alforriar escravos, também agia na violência quando necessário, invadindo fazendas e queimando canaviais de fazendeiros escravocratas.
No dia 1° de maio de 1884, Carlos de Lacerda lançou seu próprio jornal, que se diferenciava dos mais tradicionais da cidade, não aceitando a inserção de anúncios de “pretos fugidos” em seu jornal. O jornal tinha um objetivo específico de promover a abolição dos escravos. A sede de seu jornal era utilizada para esconder os cativos, que eram resgatados pelo Lacerda e seus amigos.
Não foram poucas as invasões que este jornal sofrera, a sede do jornal foi invadida diversas vezes pela polícia, chegando até mesmo a haver intensas trocas de tiros entre policiais e redatores do jornal. Além disso, outras investidas contra a vida de Lacerda aconteceram, como uma tentativa de assassinato do jornalista em 30 de janeiro de 1887 no antigo Teatro Empyrio na rua Direita (Treze de maio), onde ocorria uma grande reunião de abolicionistas. Neste fatídico dia, um cidadão foi confundido com Carlos de Lacerda, e acabou sendo alvejado por tiros no teatro, vindo a óbito.
Carlos de Lacerda chegou a ser detido ou interrogado pela polícia (que servia aos interesses dos escravocratas) diversas vezes, mas sempre conseguiu escapar da prisão em razão da intervenção de seus amigos abolicionistas, que colocavam os melhores advogados da corte à sua disposição, incluindo o seu irmão, o Dr, Cândido de Lacerda.
Desta maneira, é possível analisar que este grande abolicionista campista lutou quase exclusivamente pela causa dos cativos em Campos, apesar de almejar uma libertação geral em todo o país. José do Patrocínio saiu de Campos ainda muito cedo, e na maioria dos anos, este gigante da abolição passou sua vida e militância na cidade do Rio de Janeiro, sempre dando apoio ao seu inseparável amigo Carlos de Lacerda.
Como resultado de seus esforços, muitos abolicionistas se juntaram a ele em Campos, sempre atraindo a atenção e conscientizando a população em prol da emancipação dos escravos, promovendo arrecadações ou montando milícias para invadir fazendas para libertar escravos. Em 10 de março de 1888, dois meses antes da Lei Áurea, Carlos de Lacerda, acompanhado de homens ilustres como Nilo Peçanha, Francisco Portela e Cândido de Lacerda, promoveu uma convocação geral aos fazendeiros, convidando-os a um ato solene, em que se pedia a libertação destes cativos. Tal façanha rendeu a libertação de 8.727 escravos ao longo de março a abril de 1888, segundo as fontes do historiador Hervé Salgado.
Carlos de Lacerda não recebeu tréguas nem após o fim da escravidão, em 13 de maio de 1888. O histórico abolicionista continuou sendo profundamente odiado pelos antigos escravocratas da região. Cumprida a sua histórica e honrosa missão em nossa cidade, Lacerda faleceu em maio de 1897, deixando um legado heróico em nosso município.
